O trabalho escravo no ambiente doméstico é uma problemática de gênero, de raça e de classe social. A afirmativa é de debatedores que em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) nesta segunda-feira (6) apontaram a invisibilidade a que são submetidas as vítimas desse crime, em sua grande maioria mulheres, muitas vezes já desde a tenra idade.
O debate insere-se no ciclo de audiências públicas para discutir a Sugestão Legislativa (SUG 12/2018) que institui o Estatuto do Trabalho, que tem como relator da matéria o próprio presidente da CDH, senador Paulo Paim (PT-RS).
Secretária Nacional da Política de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Laís Abramo salientou que o trabalho escravo, forçado ou em condições análogas a de escravização constitui uma gravíssima violação aos direitos e princípios fundamentais do trabalho e aos direitos humanos das pessoas submetidas a tal condição:
— O trabalho escravo configura, ao lado do trabalho infantil, uma das antíteses mais claras à noção de trabalho decente. O Brasil vinha se destacando no combate a essa chaga. (...) Infelizmente, esse esforço foi enfraquecido em anos recentes.
Laís lembrou que existem em todo o mundo seis milhões de mulheres em situação de trabalho forçado.
Um dos perfis típicos no contexto do trabalho escravo ou análogo à escravização é formado por mulheres negras e de proveniência muito humilde. Dois exemplos nortearam o debate: Sônia Maria de Jesus, resgatada no ano passado, após 40 anos de trabalho não remunerado com a família do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Santa Catarina, e Madalena Gordiano, regatada em 2020, também após quatro décadas de cerceamento a seus direitos, em Pato de Minas (MG), com a família Milagres Rigueira.
Além de não serem remuneradas pelo trabalho que executaram, elas não puderam usufruir de férias e folgas semanais, não tiveram acesso à educação e a saúde, além de sofrerem restrição de liberdade, com pouco ou sequer algum convívio social.
Procurador do Trabalho do Ministério Público do Trabalho, Thiago Lopes de Castro, que atuou no resgate da trabalhadora doméstica Madalena, demonstrou as evidências que mostram as similaridades entre os dois casos e outros tantos no Brasil:
— Ambas nasceram em 1973, e hoje têm 50 anos. Madalena foi resgatada aos 47 anos, Sônia aos 49. Ambas foram resgatadas após 40 anos de submissão à escravidão contemporânea. Ambas trabalharam para duas gerações da mesma família. Ambas as famílias exploradoras são compostas por quatro filhos que tiveram pleno acesso à educação formal e hoje estão muito bem inseridos profissionalmente. (...) Elas são vítimas de trabalho infantil doméstico, e foram privadas da educação formal por essas famílias, que não as acolheram, mas as exploraram.
Segundo Castro, o grupo móvel de combate ao trabalho escravo só realizou o primeiro resgate de trabalho doméstico em 2017. Entre esse ano e 2020, foram apenas 12 resgates em todo o país. A partir do caso da Madalena, esse número subiu para 31 resgates em 2021, 35 em 2022, em 41 em 2023.
— Aumento de mais de 1.000% no número de resgates, mas que nós sabemos que é insignificante, simbólico. (...) Há se de supor que o número de trabalhadoras domésticas escravizadas certamente corresponda a alguns milhares — alertou o procurador.
Castro esclareceu que os trabalhadores rurais escravizados passam por essa situação de forma temporária, mas as trabalhadoras domésticas acabam sendo submetidas a essa condição por décadas, tendo “a infância e a juventude roubadas”.
O caso de Sônia foi amplamente explorado pelos debatedores, que se preocupam o com o que eles chamaram de “desresgate”, após decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça ter permitido, por liminar, que ela retornasse para a casa do desembargador Borga.
— Essa foi uma decisão inédita no Judiciário brasileiro e causa perplexidade porque é o próprio Poder Judiciário institucionalizando uma cultura escravagista que perdura há 500 anos, e cuja abolição já aconteceu há 135 anos. O Estado tem de ser o primeiro a abolir esse tipo de cultura — recomendou o procurador do Trabalho.
Ele salientou que não se pode compactuar com famílias que acionam o Judiciário para pedir a declaração de filiação afetiva das trabalhadoras, quando na verdade há a exploração. Ele também disse ser importante haver mais flexibilização de ingresso para entrada em domicílios quando houver denúncias e a necessidade de uma assistência pós-resgate, “de forma que possa vislumbrar uma vida livre e autônoma” às vítimas.
Auditor fiscal do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), André Roston afirmou que o trabalho da mulher é invisibilizado, por isso, perto de 90% das pessoas resgatadas são do sexo masculino.
Sobre o caso de Sônia, Roston enfatizou que era direito dela, como vítima, não ter tido contato com os seus opressores após o resgate, o que gera um perigoso precedente, segundo o debatedor:
— E isso foi negado à Sônia. A gente corre um sério risco de que esse direito seja negado as próximas vítimas.
Defensor público da União (DPU), William Charley afirmou que a situação da Sônia é muito grave e que não cabe à vítima ser questionada “se ela quer se livre ou não”.
A coordenadora do Instituto Movimento Humaniza (IMH-SC), ex-senadora Ideli Salvatti (SC), enfatizou que Sônia foi vítima de trabalho infantil, ao ter sido tirada de sua família aos nove anos. Com deficiência auditiva, ela nunca teve acesso a Libras ou qualquer outro tipo de educação formal:
— Esse procedimento de resgate não se deu em um domicílio qualquer, mas ocorreu na casa de um desembargador. Foi resgatada numa operação muito clara e foi encaminhada ao abrigo para ter as condições mínimas. E a família fez uma solicitação judicial de direito de visita ao STJ [Superior Tribunal de Justiça], que não só deu o direito de visita, mas a possibilidade de ela retornar ao local onde ela conviveu [com a família]. É um conjunto de peculiaridades inadmissíveis. O desresgate é inédito, nunca aconteceu.
Ideli cobrou que a Segunda Turma do STF analise, após oito meses, o mérito da questão.
Irmã de Sônia, Marta de Jesus disse que sua mãe morreu procurando pela filha. Ela negou que a mãe tenha dado a menina à família de Santa Catarina. Disse que sua mãe apenas deixou que ela fosse cuidada, mas mantendo contanto com a família biológica, o que nunca mais aconteceu.
— A minha mãe dizia: "eu vou morrer e não vou rever a minha filha". Como ela [Sônia] está hoje? O que está acontecendo? Não sabemos — lamentou Marta, ao enfatizar que ela e os demais irmãos tiveram acesso à educação, diferentemente de Sônia, e que querem o retorno da irmã à família biológica.
A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Luciana Paula Conforti avaliou que "há negação e desvalorização do trabalho doméstico" e que há muita subnotificação e dificuldade de resgate pelos casos ocorrerem no âmbito de residências.
Segundo Luciana, o trabalho doméstico é listado como uma das piores formas de trabalho infantil. Ela pediu que seja votado o quanto antes projeto de lei que concede pensão especial para acolher essas trabalhadoras vítimas da escravização.
A secretária Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Anna Paula Feminella, adverte que esses empregadores confiam na impunidade para manter os resquícios escravocratas:
— Estamos falando dos direitos humanos de uma cidadã. Quantas mulheres surdas, com deficiência, podem estar em uma situação como a dela? Temos de falar também em deficiência, que ainda é um tabu. Não podemos tratar isso como um detalhe, essa questão da pessoa com deficiência também está em jogo.
Para Valdirene Boaventura Santos, secretária de Assuntos Jurídicos do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Domésticas do Estado da Bahia, a categoria ainda continua na “invisibilidade nacional sendo escravizada”:
— Nós, como trabalhadoras domésticas, precisamos de respeito. Todas nós aqui queremos Sônia livre, queremos as “Sônias” livres.