Arnaldo Galvão
A Receita Federal contabilizou, apenas no primeiro trimestre deste ano, compensações de R$ 48,8 bilhões em créditos das contribuições PIS e Cofins e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). As empresas que apresentaram declarações nesse valor ainda ficaram com uma sobra de R$ 20,1 bilhões após as compensações que fizeram com suas obrigações tributárias. Para se ter uma ideia do que esses R$ 68,9 bilhões representam, a maior arrecadação mensal no primeiro semestre ocorreu em janeiro - R$ 58,79 bilhões.
Com esses números na mão, o coordenador geral de Estudos, Previsão e Análise da Receita, Marcelo Lettieri, alerta para o efeito perverso das normas de compensação sobre as previsões de arrecadação. Elas impedem, diz ele, que a administração tributária faça projeções com margem aceitável de segurança porque o sistema retirou a possibilidade de qualquer padrão nas compensações.
Para piorar ainda mais esse cenário, ele argumenta que a crise econômica mundial, no seu período mais agudo, em 2008, secou as fontes de crédito, o que empurrou muitas empresas para posturas mais agressivas. Alguns contribuintes aproveitaram o atual sistema - meramente declaratório e de livre compensação com qualquer tributo - para obter capital de giro, o que Lettieri chama de "banco fiscal". Por meio desse artifício, uma empresa informa ter direito a compensações e deixa de pagar determinados tributos, o que lhe dá fôlego financeiro instantâneo. Por outro lado, a Receita tem cinco anos para fiscalizar e cobrar o que julga devido. Se não há irregularidade, a autoridade homologa a compensação.
Lettieri deu um bom exemplo do que deve ocorrer com a arrecadação em julho. Os números, ainda não definitivamente contabilizados, mostram queda real de pouco mais de 5% no valor obtido com tributos se comparado com julho de 2008. O coordenador admite que a Receita terá decepção com o impacto positivo que esperava da abertura de capital da Visanet. Para julho e agosto, o fisco contava com algo próximo de R$ 2 bilhões, mas as compensações devem ter reduzido esse volume a menos da metade.
Nesse cenário, a Receita quer mudar as normas sobre compensações para garantir mais segurança na previsão do fluxo dos recursos obtidos com o pagamento de tributos. O principal motivo é a alta incidência de irregularidades nesses procedimentos. Lettieri informa que entre 40% e 60% dos créditos declarados pelas empresas nas compensações de tributos são inexistentes. Por esse motivo, está sendo preparada uma profunda análise técnica para dar maior rigor à legislação.
As compensações do primeiro trimestre mostram que as empresas que mais declararam créditos de PIS e Cofins foram as do setor de fabricação de alimentos, com R$ 9,29 bilhões. Em seguida, vêm R$ 7,58 bilhões do comércio atacadista, com exceção de veículos automotores e motocicletas. O terceiro lugar na lista dos setores que mais apresentaram créditos de PIS e Cofins ficou com a indústria química, com R$ 4,77 bilhões.
No caso do IPI, os três setores que mais declararam créditos no primeiro trimestre foram o comércio atacadista (exceto veículos e motos), com R$ 2,75 bilhões, fabricação de alimentos (R$ 2,61 bilhões) e produção de máquinas e equipamentos (R$ 2,06 bilhões).
Para a Receita, os contribuintes brasileiros podem compensar tributos com excesso de liberdade. O crédito referente a um tributo pode ser compensado deixando-se de pagar outro tributo, por exemplo. O coordenador explica que a Lei 10.637, de dezembro de 2002, reformou a Lei 9.430 de dezembro de 1996. A situação era muito diferente antes porque a Receita tinha de autorizar previamente a compensação. O que vale, atualmente, é a mera declaração do contribuinte, sujeita a posterior verificação da autoridade. Com as regras radicalmente mudadas em 2002, foi desenvolvido o sistema PER/DCOMP - Pedido Eletrônico de Restituição, Ressarcimento e Reembolso, combinado com a Declaração de Compensação.
Entre dezembro passado e abril de 2009, a Receita contabilizou movimento "atípico" de R$ 4 bilhões em compensações. A Contribuição de Intervenção sobre o Domínio Econômico (Cide) sobre combustíveis é um exemplo de tributo que teve sua arrecadação reduzida de modo expressivo e imprevisível. No primeiro trimestre, os valores referentes a esse tributo tiveram queda expressiva em função de compensações. A Petrobras foi a maior responsável por esse comportamento atípico da Cide.
Lettieri recusou-se a comentar a polêmica com a Petrobras, mas as informações oficiais sobre a Cide-combustíveis, disponíveis na página da Receita na internet, mostram arrecadação de apenas R$ 816 milhões nos primeiros cinco meses de 2009 - queda real de 76,54% sobre o mesmo período de 2008.
Em maio, a Petrobras divulgou detalhada nota explicando que, considerando variações cambiais, ajustou suas apurações de lucro e tributos, especialmente Imposto de Renda (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Ela adotou o regime de caixa de janeiro a dezembro de 2008. A Petrobras garantiu que agiu de acordo com a lei e identificou créditos de R$ 2,14 bilhões em dezembro do ano passado. Por outro lado, reconheceu que teria de pagar R$ 1 bilhão, mas esse valor foi recolhido em janeiro de 2009. A empresa usou esse crédito de R$ 1,14 bilhão para compensar pagamentos das contribuições Cide, PIS e Cofins.
Depois da publicação de reportagem mostrando as compensações da Petrobras, a Receita informou, sem citar a estatal, que a mudança da apuração do lucro, do regime de competência para o de caixa, seria irregular.
As atuais normas de compensação servem, para a Receita, como arma de planejamento tributário "agressivo". No caso de grandes empresas, uma fiscalização sobre compensações pode durar até um ano. Nesse cenário, o coordenador alega que há total inversão do princípio da indisponibilidade do interesse público. Isso significa que a receita tributária que financia despesas públicas fica subordinada a interesses particulares. Se a agressividade do primeiro trimestre continuar, o planejamento da fiscalização pode ser alterado se for necessário desviar o foco para as compensações.
No início de julho, Lettieri participou de seminário sobre administração tributária organizado pela Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris. Ele relata que, na França, o governo abriu exceção para permitir, durante a crise econômica, a compensação do Imposto de Renda das empresas com um tributo cobrado das corporações. A queda na arrecadação desse tributo foi de 90% no período janeiro-maio. "Precisamos mudar o sistema. O que é exceção em muitos países, aqui é regra", compara.
Na avaliação da Receita, o Brasil precisa de normas legais mais equilibradas para as compensações de tributos. O coordenador admite que é necessário dar alguma flexibilidade aos contribuintes, mas, ao mesmo tempo, é fundamental preservar a capacidade de previsão da arrecadação.