Fabiano Jantalia
Além de grande mobilização e comoção social, os desastres naturais recentes que abateram o estado de Santa Catarina levaram as autoridades a se desdobrar na busca de medidas logísticas e normativas que permitam mitigar as conseqüências do ocorrido para a população catarinense. Com prontidão e competência, o Ministério do Trabalho anunciou que proporá ao CODEFAT a ampliação do benefício do seguro-desemprego para os trabalhadores atingidos por calamidade pública. Além disso, também está sendo estudado pelo Conselho Curador do FGTS o aumento do valor do saque pelos trabalhadores atingidos pela enchente.
O saque para satisfazer a necessidades pessoais decorrentes de desastres naturais constitui uma hipótese especial de movimentação dos saldos de FGTS, que foi criada pela Medida Provisória 169, posteriormente convertida na Lei 10.878/04. A introdução dessa hipótese remonta às fortes chuvas que abateram o país no início do ano de 2004, causando estragos em diversas regiões, o que levou o governo a introduzir a nova possibilidade de saque, na tentativa de mitigar os danos causados aos milhares de desabrigados.
Para que o direito ao saque se configure, é preciso que o trabalhador resida em áreas comprovadamente atingidas, que estejam em situação oficialmente reconhecida como de emergência ou de calamidade pública, formalmente reconhecidos pelo governo federal. Além disso, a solicitação de saque deve ser feita em até 90 dias após a publicação do ato de reconhecimento de tal situação. A lei não fixou o valor do saque, mas o Decreto 5.113/04, ao regulamentar a matéria, estabeleceu que o montante do saque em caso de desastre natural está limitado a R$ 2,6 mil.
Já em juízo superficial, parece claro que o valor é insuficiente para repor as perdas que normalmente decorrem de desastres naturais como os de Santa Catarina, que deixam desabrigadas e praticamente sem quaisquer bens os cidadãos prejudicados pelas convulsões da natureza. A rigor, para que a nobre finalidade da lei fosse atendida, deveria ser assegurado o direito ao saque da totalidade do saldo da conta do fundista. Afinal, o FGTS se destina a socorrer o trabalhador em momentos de necessidade, e não há necessidade maior do que reconstruir sua vida, sua casa e sua família.
Uma visão mais abrangente da questão expõe um problema ainda mais grave: a obsolescência da atual regulamentação do FGTS, especialmente no que tange às hipóteses legalmente reconhecidas de saque. É inegável que o Fundo tem uma pronunciada dimensão social, que se consubstancia a partir da destinação social de seus recursos. Enquanto fonte de recursos para investimento em habitação popular, saneamento básico e infra-estrutura urbana, o FGTS é um poderoso instrumento de fomento, destinando crédito a setores e atividades geradoras de emprego e bem-estar, além de prover condições básicas de existência aos cidadãos beneficiados. Todavia, é preciso lembrar que, além dessa dimensão social, há uma importante dimensão individual: o FGTS foi originalmente concebido para socorrer o trabalhador e sua família na cessação do vínculo de emprego ou em situações excepcionais durante a vigência deste, como doenças, aquisição de moradia e falecimento, dentre outros.
A convivência harmônica entre essas duas dimensões é imprescindível para a eficácia e a legitimidade da administração dos recursos fundiários. Mas o fato é que a legislação do FGTS, que, com raras exceções, não foi substancialmente modificada ao longo de seus mais de 42 anos de história, privilegia demais a dimensão social em detrimento da individual. O desequilíbrio se evidencia mais fortemente quando se analisam as hipóteses previstas para o saque, que, apesar de não serem tão restritas, estão sujeitas a tantas minúcias que dificultam o acesso do trabalhador aos recursos de sua própria conta vinculada. Além do caso dos desastres naturais, já retratados, a disciplina dos saques por motivo de doença e para aquisição de moradia própria, por exemplo, há muito não atende satisfatoriamente as necessidades do trabalhador.
No que tange às doenças, a enumeração taxativa das hipóteses doenças acaba ignorando um extenso rol de outras doenças que poderiam ser tidas até como mais graves, para as quais não haja cura ou meio conhecido de minoração de seus efeitos. Com isso, outras doenças tão graves e ameaçadoras à saúde do trabalhador acabaram sendo preteridas, deixando sem amparo os que se encontrem em tal situação. Quando se trata de moradia própria, a aquisição ou pagamento de financiamento com recursos do FGTS do próprio trabalhador talvez seja aquela cuja implementação seja mais difícil, complexa e burocrática dentre todas as hipóteses de movimentação previstas. Apesar de algum avanço, a lei ainda erige uma série de requisitos para que o trabalhador utilize os recursos de sua conta vinculada, o que não se coaduna com os propósitos de acesso à moradia.
A solução para essas e outras distorções passa necessariamente pela rediscussão da lei do FGTS, ao menos no que diz respeito ao direito de acesso do trabalhador aos recursos de sua própria conta vinculada. É preciso conferir, assim, mais poderes ao Conselho Curador para dispor sobre o saque, relegando à lei apenas as disposições essenciais e gerais. Afinal, se, como dizem, o FGTS é patrimônio do trabalhador, não faz sentido deixar este patrimônio tão pouco acessível a seu próprio titular, tal como ocorre atualmente.